O sopro de deus´
Um rio que voa
O Vento Aracati banha diariamente com frescor o sertão, seguindo o caminho inverso do JaguaribeOrós/ Itaiçaba/ Limoeiro do Norte. Nenhum dia acaba sem cadeiras espalhadas em frente de casa. Nenhuma praça se torna mais importante que as calçadas, a primeira e mais tradicional rede social no sertão. Quando a tarde cai, moradores dos municípios ribeirinhos seguem um ritual diário de sentar entre a porta de casa e o meio-fio do calçamento para aguardar um dos principais fenômenos trazidos pelo Jaguaribe: o "sopro de Deus".
Um vento que não vem sem aviso. É anunciado em sons a muitos metros distantes. Para Marilena Gomes, ribeirinha de Limoeiro do Norte, "Deus não assopra, assobia".
Partindo de onde acaba o Jaguaribe - entre Aracati e Fortim, o ronco do ar levanta poeira, balança coqueiro, titubeia a jangada, até barco a motor, sacode as palhas da carnaúba (dizem que são aplausos), arrebita a saia da moça, os cabelos da menina sentada no batente enquanto a mãe cata piolho. Ainda joga para longe as cadeiras do restaurante de dona Maria Meire Feitosa, na Ilha do Paraíso, localizada no açude Orós.
Houvesse ainda exuberante mata ciliar às margens do Jaguaribe, o famoso assobiaria ainda mais alto. Ninguém diz o que é, só sente, já de acostumado: é o Vento Aracati.
O fenômeno atmosférico, descrito desde José de Alencar (em Iracema), além de evento sociocultural em centenas de comunidades, parte todos os dias da foz no sentido contrário ao Jaguaribe, encontrando no rio o canal de escoamento. Em diferentes horários, passa por Itaiçaba, Jaguaruana, Russas, Limoeiro, Tabuleiro, São João do Jaguaribe, Alto Santo, Jaguaribara, Jaguaribe, Iguatu, Orós e vai bater, já com menor força, em Icó.
Vento-serpente
O vento frio refresca o sertão com e sem chuva. Dura apenas alguns segundos de passagem, mas nunca despercebidos. Tendo ido o vento embora, é como se o dia estivesse pronto para acabar.
Raimundo Diógenes, agricultor que perdeu a conta da idade depois dos 70 anos, recebe o vento quando o sol está prestes a se pôr em Limoeiro do Norte.
Demora um pouco mais até recolher a cadeira e seguir para dentro de casa. Ligado na Rádio Educadora Jaguaribana, houve, em seu radinho, a cantoria e a Ave-Maria das 18 horas. Enquanto isso, dali, o Aracati já seguiu serpenteando o rio de águas, pedras ou somente cercas de arame farpado.
Quando chega ao Icó já são quase 9 da noite. Em dia de São Pedro, até a fogueira sente, quando o fogo dança - no livro Pátria dos Ventos (2007), o poeta Luciano Maia faz acusação: "flagelo das lamparinas, ele é sócio do apagão".
O Vento Aracati é o rio que voa, mas da foz rumo à nascente do Jaguaribe. Em 1865, no livro Iracema, José de Alencar lembrou que "o doce Aracati chega do mar, derrama a deliciosa frescura pelo árido sertão. A planta respira; um doce arrepio eriça a verde camada da floresta". O poeta e o romancista versaram o vento fresco e misterioso que, há tempos, está na memória cotidiana do povo jaguaribano.
Casal Cilene e Raimundo Cunha. À beira do Jaguaribe, o tempo é outro, devagar para receber os ventos nas tardes de contemplação
O Vento Aracati foi observado também à luz da ciência por pesquisadores do Laboratório Integrado de Micrometeorologia e Modelagem Atmosférica (Limma), da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Uma das constatações não poderia ser mais própria do que a realidade sertaneja revela: é nos dias mais quentes, com máximas de 36ºC, que o Aracati melhor se apresenta.
"Refresca" o continente
"O Aracati não seria tão querido se não fosse tão fresco para o sertão", afirma Augusto Lopes, memorialista do Jaguaribe. Conforme pesquisa da Uece, a dez metros de altura, sua velocidade supera os seis metros por segundo. Mas fica a mais de 200 metros de altura a sua maior correnteza, com forte rajada de vento do mar a refrescar continente a dentro.
O potencial eólico é tão grande que é nas dunas no estuário do Jaguaribe que está o maior número de usinas eólicas do Estado do Ceará.
Por todo o Vale do Jaguaribe ainda resistem os cata-ventos. Eles que trazem a água de poços profundos para alimentar o homem e os bichos. Por isso, a terra seca, para brotar, só precisa de vento. Por essas e outras, os sertanejos veem os ventos como uma dádiva divina do Jaguaribe. Sertanejos mais antigos, como Marilena Gomes, dizem que "um vento tão bom só pode ser o sopro de Deus".
Jangadeiro é recebido pelos filhos após um dia de pesca na foz do Jaguaribe, em Fortim, onde o rio deságua no mar
Quando passa o Aracati, o cata-vento no quintal de Marilena Gomes fica tão alvoroçado quanto seu cachorro assim que ela retorna para casa. A agricultora mora às margens do Jaguaribe, em Limoeiro do Norte.
Depois de falar em sopro e reconhecer o barulho que anuncia a chegada do fenômeno, pensou melhor: "Deus, grande que é, sopra assobiando". Do tupi, Aracati significa "bons ventos".
MELQUÍADES JÚNIOR
REPÓRTER